Por Carlos Alberto Dória
A cozinha subdesenvolvida
O prazer, que é para mim um instante de lucidez, pressupõe o diálogo(...). Se para comer, por exemplo, fossemos retroceder na sucessão das galerias mais secretas, teríamos a tediosa e fria sensação do fragmento do vegetal que incorporamos, e a asa da perdiz rosada seria uma ilustração da zootecnia anatômica. Se não é o diálogo, nos invade a sensação da fragmentária vulgaridade das coisas que comemos Lezama Lima, “Paradiso” O discurso do comestível Convenhamos, é péssimo comer mal. Uma música ou um quadro que nos desagrada provoca menor desconforto do que um alimento que nos causa repulsa. A contrariedade pelo paladar é radical e se deve a uma entrega pessoal desmedida, pois o comer exige uma mediação na qual alguém nos assegura que o desconhecido é bom (menu confiance é expressão da mais absoluta verdade, pois sem confiança não há gastronomia). Que esse alguém seja a mãe diante de uma criança ou o chef cuisine de um sofisticado restaurante não elide a sensação de traição ao nos decepcionarmos quando abrimos a boca. A suavização dessa relação polar requer uma ordem na qual o discurso sobre o comer se erige como constitutivo da fruição.
A gastronomia sempre nos remete ao outro como propiciador de um prazer enunciado. Tomada como arte, como criação portadora de um pathos, de uma aura, ela aparece no Ocidente no período moderno. Data de então a dissolução das cozinhas consensuais, apoiadas na tradição, típicas das comunidades onde predomina, no dizer dos sociólogos, a “solidariedade mecânica”.
Nessa “virada”, inicia-se a aventura dos sabores inusitados. A partir do século XVII, os dissensos que se formam em torno das melhores práticas gustativas, as sensações novas, temidas, perdem o caráter de experiências incomunicáveis e se tornam objetos de um diálogo infinito sobre os sabores. “Há gastronomia quando há permanente querela dos antigos e dos modernos, e quando há um público capaz, ao mesmo tempo por sua competência e por suas riquezas, de arbitrar essa querela” (1) . Já no seu nascedouro a gastronomia é uma perversão: não visa saciar a fome e se projeta como promessa prazerosa escondida além da saciedade.
“As belas-artes são cinco: a pintura, a poesia, a música, a escultura e a arquitetura, cujo ramo principal é a confeitaria”, escreveu Antonin Carême (1783-1833), primeiro artífice do que conhecemos por Grande Cozinha francesa. Em que pese sua história pessoal -criança abandonada pelos pais aos 10 anos de idade, logo se imiscuiu em cozinhas profissionais para aprender um ofício, mas sempre cultivando, nas horas vagas e como autodidata, a sua paixão verdadeira, a arquitetura-, Carême é uma perfeita encarnação do espírito da época, pois oferece à sociedade das cortes uma solução para a compreensão do lugar daquelas práticas e daquele discurso que vinham elevando a mesa à condição de cimento da sociabilidade das elites. A refeição -esse objeto múltiplo, capaz de mobilizar a visão, o paladar, o olfato e o tato- torna-se a força centrípeta de uma grande diretriz do século XVIII: a busca do prazer.
A gastronomia (e frente a ela a culinária se dobra desde fins da Idade Média e o ciclo das descobertas) expressa um saber que se opõe ao poder imediato da natureza; ao dominá-lo e transformá-lo a gastronomia o supera em criação. Essa potência, só conhecida em sua ação e em seus efeitos, é entendida como a manifestação de uma energia que penetra o mundo guiado pela razão.
Sob o império gastronômico a mesa deve oferecer não a naturalidade em forma comestível, mas um espetáculo do engenho humano: “Décors éphémères, obras-primas passageiras da arte decorativa, criadas por mestres confeiteiros geniais e inventivos que deviam ser ao mesmo tempo pintores, desenhistas, modeladores, arquitetos, escultores, floristas. Muitas vezes essas composições monumentais, esses tableaux arabescados requeriam quatrocentas horas de trabalho, sessenta quilos de açúcar e quinze de massa de amêndoas (...) para dissolver-se lentamente, liquefazer-se e acabar no nada” (2) . Mas a arquitetura dos prazeres a que Carême se devotou não se limitou ao aspecto visual e construtivo das suas criações. Atribui-se a ele um papel crucial no desenvolvimento dos molhos e sua técnica, além da criação de alguns que se tornaram verdadeiros clássicos, como o bourgiognonne, o salmis, Robert, supréme e hollandaise.
O objetivo dos molhos -nascidos do jus dos alimentos, quando esses “sucos” dos assados ganham autonomia como problema- é captar e enclausurar a “essência” das matérias-primas com as quais são elaborados, para reapresentá-las em construções rebuscadas. À época de Carême um chef era o cozinheiro que conseguia apresentar sempre criações originais, dignificando os seus mecenas perante seus comensais. A obra de Carême era um testemunho de que, para as artes e as ciências, o “seio da natureza” está sempre franqueado à razão.
Nesse enquadramento iluminista, a história da gastronomia não se diferencia dos demais domínios da alta cultura, isto é, daqueles onde é necessário um conhecimento prévio para compreender o alcance do que é oferecido para promover inovações. Por sua vez, inovações criam polêmicas que, dirimidas, generalizam os pontos de vista vencedores, se banalizam, desembocam na monotonia e criam as condições gerais para novas descontinuidades. Hoje, como ontem, não estamos alheios a tal processo.
Brillat-Savarin, com seu “Fisiologia do Gosto”, foi o primeiro autor a destacar a estreita ligação entre o prazer gustativo e o prazer discursivo; por um lado ele rechaçou o privilégio do nascimento como condição de acesso ao prazer, subtraindo a gastronomia do domínio exclusivo da sociedade das cortes; por outro, erigiu a cultura gastronômica como absolutamente indispensável para a perfeita fruição dos prazeres que o comer pode propiciar. “A gastronomia é um dos principais vínculos da sociedade; é ela que amplia gradualmente aquele espírito de convivência que reúne a cada dia as diversas condições, funde-as num único todo, anima a conversação e suaviza os ângulos da desigualdade convencional” (3) .
Ao ser uma atividade inclusiva, na qual se combinam dotes naturais e faculdades adquiridas, a gastronomia surge da pena de Savarin como um domínio especialmente privilegiado da cultura de transição entre a velha ordem e a França pós-revolucionária. As “maneiras à mesa”, tão crucial nos códigos da reciprocidade que fundamentam a sociabilidade moderna, têm grande impulso quando a própria culinária se torna um objeto discursivo.
Assim, a vida contemporânea deve ao Iluminismo, além da filosofia e das ciências que moveram o mundo moderno, uma nova maneira de vivenciar os prazeres gustativos, ausentes nas fases anteriores da civilização ocidental (muito embora, na China, 3500 anos antes já se praticasse a culinária como “arte”...) e que acabou por se erigir num “sistema”. O “sistema culinário” aponta para um conjunção de práticas e saberes codificados, uma lógica de apropriação da natureza que é partilhada por pessoas em vários tempos e lugares, que reconhecem uma “sintaxe”, domínios de concordância, um vocabulário e regras combinatórias expressas através de práticas de trabalho (receitas), tudo de um modo irredutível a outros sistemas de conhecimento.
A montagem do sistema culinário
Entenda-se: quando dizemos sistema culinário a expressão nos remete à cozinha ocidental, sistematizada ao longo dos séculos XVIII e XIX na França, usualmente conhecida por Grande Cozinha francesa. Num vôo largo, essa cozinha tem pelo menos três grandes momentos, identificados com seus respectivos inovadores: o momento de Antonin Carême, “cozinheiro dos reis e rei dos cozinheiros”, que dominou o período napoleônico, criando e fixando grandes molhos e a estética tributária da arquitetura.
Carême abominava a cozinha do Antigo Regime por práticas como o uso abusivo de especiarias e a mescla de carnes e pescados num mesmo prato. Suas inovações foram no sentido de conferir maior leveza aos cardápios, eliminando os excessos de gordura, introduzindo as sopas como início imprescindível de toda refeição e buscando um equilíbrio calórico entre os pratos.
Carême, considerado “o Napoleão do forno”, serviu a Tayllerand, a Alexandre I e ao barão Rotschild. Deve-se a ele, ainda, a criação do uniforme e do chapéu dos cozinheiros, que definem visualmente a “profissão”, o asseio e a hierarquia que devem presidir o fazer culinário. Modernamente, se algo se pode criticar em Carême, é a presença absolutamente dominante dos molhos, escondendo ou suprimindo o sabor ou aroma natural das carnes e demais produtos neles sub-sumidos. Mas seguramente há, na história da culinária ocidental, um antes e um depois de Carême.
Auguste Escoffier (1846-1935), artífice da cozinha das grandes redes de hotéis surgidas ao final do século XIX e começo do XX (Savoy, Ritz, Carlton etc.), autor do extraordinário “Guide Culinaire” (1902) é quem retoma os ensinamentos de Carême e os adapta aos novos tempos do industrialismo.
Ele simplifica os molhos, sistematiza e generaliza procedimentos técnicos, colocando-os em condições de serem repetidos de forma seriada em qualquer parte do mundo, e propala que a grande virtude de uma cozinha nacional só pode advir da excelência de suas matérias-primas e da formação técnica impecável dos chefs. Sua filosofia culinária é inequivocamente clássica: o fundamento continua sendo os fundos de cocção (especialmente os fonds de vitela, de peixe e de aves), como na grande arte estabelecida por Carême, mas que exigem adaptação aos tempos modernos para continuar imperando (“Os molhos representam a parte capital da cozinha. São eles que criaram e mantém a preponderância universal da cozinha francesa” (4) ) .
Para ele, a afinação do paladar na sociedade submetida a um ritmo “ultra-rápido” exige a revisão técnica e a adaptação às novas circunstâncias de fruição gastronômica. Somente sob essa condição pode a arte culinária sobreviver. Escoffier dirá que o edifício culinário que se erigiu a partir dos fonds -muitas vezes suficientes por si próprios- assumiu dimensões desproporcionais com as exigências de parcimônia dos tempos modernos. A arte culinária, “nas formas de sua manifestação, depende do estado psicológico da sociedade”. Ao invés da celebração cortesã, a mesa moderna deve ser um hiato, uma pausa no “turbilhão dos negócios” que move a sociedade industrial.
A sedução culinária consiste agora em fazer o tempo à mesa afastar-se da sensação de um “tempo perdido” para se converter num tempo mágico capaz de “capturar” o cliente (sujeito ausente na sociedade das cortes) pela fantasia e pela satisfação. Uma criação de Escoffier que bem expressa sua filosofia, é a famosa sobremesa Pêche Melba, que criou para a soprano australiana Nellie Melba: um simples pêssego, colocado por dois segundos em água fervente para tirar-lhe a pele e que é, depois, gelado e servido com um sorvete de baunilha e uma calda quente de amoras (5) .
O terceiro e último grande momento da culinária ocidental vamos encontra-lo já nos anos 70 do século XX, em Paul Bocuse com a sua nouvelle cuisine (ou cuisine du marché). Ela expressa um movimento que conquista uma leveza nova para a cozinha francesa tradicional.
Dirá Bocuse de forma revolucionária: “Já não são necessários esses fonds de molhos, essas marinadas e outras faisandages (...), esses pratos complicados, demasiado preparados, aquelas guarnições que eram lei na cozinha do século XIX. Esta simplificação na preparação dos pratos repercute igualmente nos tempos de cocção. Os pescados, por mais curioso que possa parecer, devem servir-se rosados na carne próxima à espinha. Os pescados estão sempre demasiado cozidos. As vagens devem estalar ao se mastigar e as massas devem ser al dente” (6) .
Bocuse, à diferença de Carême e Escoffier, dirige-se a um público leitor doméstico, sem prévia formação técnica. Seus procedimentos, ultra-simplificados se comparados com Carême ou Escoffier, são compensados por uma ênfase nova na qualidade dos ingredientes encontrados no mercado. Na verdade, o chef não é mais aquele indivíduo portador de uma idéia que, obstinadamente, busca realizar da melhor maneira possível, procurando trabalhar com os ingredientes únicos e insubstituíveis: ele é, agora, alguém que aceita os desafios colocados cotidianamente pelo mercado e pelas estações que definem a oferta de produtos frescos e de qualidade. A rigor, sua maestria está à prova a cada momento...
Outra inovação de Bocuse é a abertura para o mundo e a “desterritorialização” da cozinha francesa: “Podemos comprar os melhores produtos que existem, e não importa onde, graças, entre outras coisas, aos meios de transporte modernos”. Além desse universalismo dos ingredientes (convém lembrar que, para Escoffier, a cozinha francesa é a melhor porque, por sorte do destino, a França produz as melhores matérias primas, o que cria a base objetiva para a ação do gênio inventivo...), Bocuse propugna a necessidade do olhar sobre o estrangeiro: “Creio que é essencial sair ao estrangeiro, para ver o que anda mal dentro de casa. Quanto mais se viaja, mais se vê como os outros não estão inativos, e como progridem.(...). Por isso é necessário ir vê-los. Afinal de contas o ofício de cozinheiro é um ofício de companheiros. É necessário ter dado uma volta pela França, ou quiçá várias, mas hoje quem queira progredir precisa dar a volta ao mundo. Cada vez que viajo a outros países volto com idéias novas. Por exemplo, em Hong-Kong pude apreciar como sabem preparar bem os legumes, quer dizer, cozinhá-los por pouco tempo. Dali trouxe o método de cozinhar as ervilhas. Eu sempre as preparava refogadas em toucinho e cebolas e me dei conta de que, ao cozinhar as ervilhas, assim como as vagens, em água salgada, se obtém algo maravilhoso, e se a nova cozinha francesa reflete a necessidade de meus compatriotas de voltar às fontes da nossa tradição culinária, abre também a perspectiva do que se pode fazer observando os nossos vizinhos”.
Do ponto de vista historiográfico, talvez seja cedo para compreender o alcance da mudança operada a partir da nouvelle cuisine. Apesar disso, é possível suspeitar que ela guardou estreita relação com uma filosofia de vida que se esboçou a partir de 1968, como a “volta à natureza”, o antiindustrialismo etc., e que hoje desemboca na assunção explicita da agricultura “orgânica” como única fonte possível para uma boa culinária.
Georges Blanc, o mais jovem chefe a ser laureado com três estrelas pelo Michelin em 1981, remonta a origem da sua “cozinha natural” vegetariana a 1970, quando os chefes começaram a sentir a “necessidade de uma cozinha leve”. O seu mergulho pessoal em direção à simplicidade da vida camponesa, a uma idealizada cozinha de sua avó (7) , é a resposta que encontrou a uma necessidade que entendia como geral. O despojamento para reencontrar a natureza, sem as mediações da grande indústria de alimentos, recuperou a dimensão artesanal da atividade.
Outras inovações importantes seguiram-se a Bocuse. Ele declaradamente não atribuía importância à apresentação dos pratos, à sedução visual, mas os demais seguidores da nouvelle cuisine acabaram por se entregar de corpo e alma à estética oriental, retomando o japonismo que já estivera presente em vários domínios estéticos da cultura ocidental um século antes. Também decorre desse influxo modernizante a reconsideração da culinária italiana que, desde o século XVIII, sempre cultivara uma leveza e uma simplicidade pouco valorizadas à época de Carême.
A crise do sistema
A esses três grandes momentos se opõe a fusion cuisine, surgida da idéia de “esgotamento” da nouvelle cuisine. Na fusion é justamente a busca de ingredientes inadaptados aos procedimentos da cozinha ocidental, porque deslocados do seu lugar em outros sistemas culinários (especialmente orientais), que move os chefs no caminho de experiências culinariamente insólitas.
O crítico gastronômico da “The New Yorker”, Arthur Lubow, nos oferece um dos melhores insights sobre a questão. Ele toma como exemplo a relação da culinária ocidental com a indiana, especialmente nos Estados Unidos, onde a fusão indiano-francesa experimentou um boom no final dos anos 90.
Vários chefs passaram a utilizar ingredientes da cozinha indiana sem respeitar as tradições e a filosofia correspondentes: o feno grego (Trigonella foenum-graecum), que é uma semente de sabor amargo e bastante tóxica -um dos componentes do curry- é então empregado indiscriminadamente em saladas e frutos do mar, assim como os grãos de mostarda crus; o óleo de canola substitui as gorduras típicas das várias cozinhas indianas (gordura de coco, óleo de mostarda e manteiga clarificada -o famoso ghee); a curcuma (Curcuma longa), que de condimento passa à condição de corante e assim por diante.
Para Lubow, o modismo contribui para o empobrecimento da cozinha indiana, e cita um exemplo: o cominho -o mais popular ingrediente utilizado nos restaurantes da fusion cuisine- pode ser utilizado cru ou torrado ou, ainda, frito em óleo. Cada uma dessas utilizações na cozinha indiana é radicalmente distinta das demais. A utilização crua e abusiva torna-se kitsch. Assim, a Índia, que há tantos séculos vem emprestando aromas e sabores ao Ocidente, popularizada pelo uso do curry, sofre um autêntico atentado nas versões pós-modernas da culinária em voga nos EUA (8) .
A tese de Lubow é que as ricas e diferenciadas cozinhas do Kerala, de Bengala e do Punjab são “assassinadas” nas mãos dos chefs movidos pelo incontrolável desejo de inovar sem ter a imprescindível cultura e o conhecimento suficiente da Índia para compreender a inserção das suas várias cozinhas nos modos de vida correspondentes. A crítica de Lubow à desconstrução culinária nos remete à linguagem estruturada que ela é, cujas regras precisam ser conscientes para se chegar ao bom resultado da criatividade. “Uma simples especiaria pode ser tocada como um violino, produzindo glissando ou pizzicato, conforme o desejo do maestro”, diz.
De fato, a linguagem musical fornece uma boa analogia para a arte culinária e poderíamos dizer que, no mundo moderno, há nela uma permanente tensão entre a construção sinfônica e a construção jazzística. A Grande Cozinha francesa caminhou, pelas mãos de Carême e Escoffier, no sentido sinfônico: uma grande refeição possui uma abertura, os vários andamentos, as tensões, contrapontos e o finale -tudo segundo a harmonia ditada pelos molhos. Mesmo o trabalho dos grandes chefs inovadores visando permitir a emergência dos sabores naturais dos ingredientes, não desestruturou essa lógica.
Por outro lado, a “vertente jazzística” se revela quando observamos as grandes linhas de formação do repertório culinário ocidental. Constatamos ai uma incansável apropriação de produtos novos e a sua reinterpretação no sistema culinário, sem jamais abalar seus fundamentos. Assim foi com o milho, a batata, o tomate, as pimentas, o açúcar e todas as especiarias das “índias ocidentais e orientais”. Esse processo, cujo andamento é dado pela formação e disseminação das “modas”, sempre leva à exaustão das possibilidades criativas e à monotonia, obrigando a um debruçar-se sobre outros “estoques” naturais.
Como o jazz, a culinária ocidental precisa se alimentar de novos “ritmos” para se manter viva e dinâmica (9) . Essa característica de sistema “aberto”, capaz de assimilar e reinterpretar os elementos exógenos, é o que o singulariza (10) e projeta a culinária ocidental como um grande aparelho de deglutição do mundo. Outras são as lógicas das cozinhas orientais, constituindo sistemas à parte.
Tropicalização do gosto
As considerações anteriores servem para interrogar um novo élan que se percebe, entre nós, por toda parte. De repente, o Brasil parece pronto para um salto de qualidade na sua gastronomia.
Um ânimo novo comanda os espíritos: a classe média se dá conta de que cozinha não é “apenas” o lugar de batuque; as universidades oferecem cursos “superiores” de culinária; as editoras descobrem um novo filão, ainda que não se arrisquem a editar os verdadeiros clássicos do gênero; o boom dos gadgets de precisão transforma a cozinha no coração hi-tec da casa; centenas de novos bistrôs pipocam no eixo Rio-São Paulo e fora dele; cursos de culinária para amadores povoam as noites paulistanas; as revistas especializadas multiplicam-se. Há a sensação de que um país moderno necessita uma gastronomia desenvolvida. Mas o que pode ser o desenvolvimento gastronômico brasileiro nas condições atuais?
Seguramente há dois caminhos fecundos seguidos ou a seguir: o da imitação e o da criação. Uma breve consulta aos guias culinários paulistanos registra não mais do que 5 restaurantes de “cozinha brasileira” -sempre ancorados na “tradição”- contra mais de 20 franceses e mais de 30 italianos, em sua maioria “inovadores” (isso para ficarmos apenas nas principais categorias).
Uma indigência nativa que contrasta com a propalada biodiversidade nacional. Afinal, somos ricos apenas em natureza incomível ou falta-nos algum ingrediente para extrair das riquezas naturais novas possibilidades gastronômicas?
Ora, num mundo onde a pantofagia é celebrada como aventura crítica (11) , a questão não é de nacionalismo culinário. Ao contrário, a dimensão imediatamente universal é dada pelo fato de que a fusion cuisine tem ocupado um espaço respeitável de uns cinco anos para cá e nos lança, ao menos como metáfora, um desafio: uma fusão com a nossa própria singularidade, do nosso superego culinário afrancesado com o nosso id tropical...
Fernão Cardim e Gabriel Soares de Sousa, cronistas coloniais, dão notícias de um Brasil bem mais comestível do que hoje percebemos. Brasil no qual o colonizador tinha como norte comer “tudo o que índio ou macaco comiam”. País enriquecido pela recepção de frutos orientais que, como a manga, foram domesticados em Goa no século XVI, sob os auspícios do médico e cristão-novo Garcia da Orta, e depois transplantados para cá. Médico ilustre aquele Orta, cujos feitos foram celebrado em versos por Camões:
Verdes que em vosso tempo se mostrou
O fruto daquella Orta onde florecem
Plantas novas, que os doutos não conhecem.
Olhai que em vossos annos
Produze huma Orta insigne varias ervas
Nos campos lusitanos,
As quaes, aquellas doutas protervas
Medea e Circe nunca conheceram,
Posto que as leis da Magica excederam.
Não é por falha da natureza que nossa gastronomia moderna há de ser de importação (12) . Afinal, a globalização do gosto no Brasil iniciou-se bem antes dessa que hoje parece novidade.
A rigor, o desafio de hoje não advém dos princípios que regem a fusion cuisine, mas das dificuldades constitutivas da renovação culinária. Uma delas é o debruçar-se sobre a natureza com o mesmo espírito iluminista que deu origem à Grande Cozinha, quando a potência da razão humana rompe os limites do mundo da experiência para deitar cidadania no mundo empírico; outra é o diálogo sempre difícil -quando não impossível- entre sistemas culinários diferentes, como os que nomeadamente compõem nossa tradição: as culturas indígenas, a herança negra e a ocidental ibérica.
É a base fraca, doméstica, de desenvolvimento culinário que abre um espaço bastante grande para o mito das “três cozinhas” como constitutivas da cozinha brasileira. Trata-se de um mito de origem, derivado da representação do brasileiro pelos modernistas de 22.
A convivência entre sistemas irredutíveis uns aos outros é absolutamente diversa, por exemplo, daquela entre as cozinhas regionais italianas ou francesas, todas integrantes de um mesmo sistema, apesar das particularidades locais e da variedade de matérias-primas e preparações que constituem suas marcas distintivas. Por analogia, podemos dizer que as tradições das “três cozinhas” brasileiras são como línguas diferentes, ao passo que as cozinhas regionais européias -francesas, italianas etc.- são como dialetos de uma mesma língua.
Entre nós, a chamada cozinha mineira, mesmo com grande proximidade com a cozinha portuguesa camponesa, não chegou a ser hegemônica. A cozinha baiana é dessas “tradições inventadas” (13) e nunca perdeu o aspecto ritual do seu consumo, oriundo do candomblé, o que dificultou a sua generalização. Apesar disso, a sua riqueza compilada (14) é significativamente maior do que a prática culinária de cunho comercial que ensejou.
Já a tradição indígena é ainda mais complexa. Além do que deixou de influência duradoura no Pará, talvez só em São Paulo, pela extrema pobreza dos modos de vida até a fase do café e da industrialização, a sua influência tenha sido grande embora transitória. Mesmo assim, estudos recentes indicados por Evaldo Cabral de Melo mostram que a mandioca e o milho não foram, nos primeiros tempos, de uso tão generalizado como normalmente se crê, persistindo o largo uso do trigo (15) .
A razão pela qual nos movemos mais no terreno mitológico do que propriamente culinário ao falar de cozinha brasileira deve-se ao fato de que não houve, até hoje, uma pesquisa histórica consistente que pusesse às claras o repertório culinário dos últimos 500 anos de alimentação. E, se essa pesquisa nunca aconteceu é porque jamais houve uma disputa hegemônica nos modos de fazer, interagir e simbolizar adotados pelas elites dominantes. Elas, que sempre olharam para Europa e, depois, para os EUA, numa perspectiva de imitação, reservaram um grande desprezo para o que pudesse cheirar a “nativo”. Uma tradição colonial bem diferente, por exemplo, da mexicana, onde o vigor culinário advém da valorização da tradição pré-colombiana na construção da hegemonia burguesa “criolla”.
Assim, a valorização desproporcional da cozinha mineira face às demais, mesmo sendo ela uma cozinha decalcada numa das cozinhas européias menos modernas, explica-se por essa vontade de ser europeu que atravessou os tempos.
A cozinha de origem indígena, que só deitou raízes no Norte, apresenta ingredientes bastante singulares, compostos de vasta relação de frutas, peixes e ervas da região. No entanto, refletem o ecossistema amazônico, o que não cobre a totalidade da variedade de tradições indígenas do território brasileiro.
Todas essas limitações indicam a vastidão do campo de experimentações gastronômicas que desafiam a culinária no país. Mas, à medida que a tradição é valorizada em detrimento da experimentação -e a razão econômica forte para isso é que as cozinhas regionais se tornaram tributárias da indústria do turismo, como elemento atrativo local-, o caminho seguido parece ser o de afastamento crescente do cotidiano do brasileiro, abrindo passo para as cozinhas étnicas de outros países, apoiadas nas comunidades de origem que possuem representação populacional expressiva nos principais centros urbanos (16) .
Comportamentos elitizados também têm grande responsabilidade sobre o estado da gastronomia brasileira. Um deles é a idéia de “exclusivo” que se perpetua no espírito de confrarias com feições aparentemente modernas. A agregação de “iniciados” em espaços apartados daqueles onde se trava o discurso geral da sociedade sobre a culinária consome energias que, em outro contexto, poderiam verter para o benefício geral.
Nesse terreno facilmente desenvolve-se o saudosismo, que contamina mesmo a imprensa gastronômica, voltada para estéreis celebrações da “cozinha imperial brasileira”, da preparação do menu do último baile da Ilha Fiscal, dos cadernos de culinária dos Orleans e assim por diante. Uma espécie de monarquismo culinário entrava o aburguesamento do gosto num pretenso refinamento das elites.
Outro fator que contribuiu para o subdesenvolvimento gastronômico, numa outra versão do mesmo culto ao “exclusivo”, foi a persistência da noção de “segredo”. A culinária é um domínio onde convenções internacionais não reconhecem o copyright de receitas ou criações, no entanto a noção arcaica de segredo ainda tem cidadania entre nós.
O “segredo” parece ter se formado na tradição ibérica e se propagado pelas Américas a partir do século XVI, através da disseminação dos conventos femininos que duram até a extinção dos morgadios, no século XIX. Num ambiente extremamente competitivo, quando os conventos disputavam os favores reais, a guarda zelosa dos “cadernos de receitas” das freiras era a garantia da posição que desfrutavam no conceito da corte.
O segredo protege especialmente a doçaria. O uso sensual do açúcar diferencia a postura católica das atitudes espartanas e anoréxicas dos calvinistas e luteranos e transforma esses centros de devoção em espaços de grandes celebrações gastronômicas (17) . Em que pese o papel dos conventos no desenvolvimento da culinária barroca, o “segredo” logo se secularizou. Transladado especialmente para o Brasil e México, não tardou para o costume ganhar as famílias senhorias, transformando os “cadernos de receitas” em parte relevante do dote das noivas.
Esta atitude, é compreensível, logo passou para a escravaria dedicada à cozinha, gerando a figura valorizada das “negras quituteiras”, de forma a que o segredo passou a presidir o desenvolvimento da culinária nacional ao menos até o século XIX e o advento dos primeiros livros sobre o tema, como “O Cozinheiro Imperial” e “O Cozinheiro Nacional”. Não é por acaso também que o livro mais célebre de culinária, editado no Brasil do século XX, chama-se “Dona Benta” e se apóia na mitologia da velha que “ensina segredos” para as futuras donas de casa.
Outro livro de sucesso nos anos 40-50, “Comer Bem”, também tinha o mesmo enfoque. Apesar desses livros que iluminam as práticas culinárias, são poucas as pesquisas sobre o que o brasileiro efetivamente comia, e é notável a sobriedade dos cardápios em São Paulo, segundo uma rara pesquisa feita em vários bairros e classes sociais nos anos 40 do século passado. Sopas simples, arroz, feijão, pão branco, carne de vaca, alguns legumes, batata inglesa, algumas poucas frutas, raras compotas -é o repertório usual em Higienópolis, Pacaembu, Mooca, Canindé, Jardim América ou Bexiga (18) .
Assim, o ingresso do país na modernidade gastronômica só se deu nos anos 80 do século 20. Como a universidade, que teve a sua “missão francesa” civilizatória, a gastronomia também teve a sua, através da valorização do trabalho de alguns chefs francofônicos que, entre nós, começaram a praticar uma culinária com fortes traços de nouvelle cuisine.
Laurent, Quentin e Claude Troisgros foram os pioneiros dessa nova onda. Eles praticaram uma criativa “cozinha metafórica” (e, às vezes, “metonímica”...): o tradicional pato com laranja cedeu lugar ao pato com jabuticaba, com manga, com maracujá; criaram bavaroises de frutas nativas; valorizaram os tubérculos brasileiros etc. Ainda há pouco, Claude Troisgros apresentou sua mais nova criação: um linguado com banana, o que para os informados sobre os hábitos culinários populares é uma simples translação do peixe com banana frita, tão popular no Pantanal.
A importância dessa geração de chefs foi evidenciar a falta de preparo técnico dos responsáveis pelas cozinhas dos restaurantes e hotéis (19) e, por outro lado, chamar a atenção do grande público sobre a riqueza gustativa inexplorada do país.
Além disso, como indivíduos da classe média européia, começaram a despertar nos brasileiros de condição social equivalente a curiosidade pelo fazer culinário. Muitos desses se aventuraram no setor nos anos 80; o Senac dedicou maior atenção à formação de profissionais de cozinha e, já nos anos 90, delineia-se o movimento de euforia profissional que hoje se vive. Não é fácil, porém, prever o desenvolvimento dessa tendência.
Por um lado, a globalização dos mercados avançou, atenuando as distâncias, e uma forte linha de sofisticação ganhou peso com a importação de ingredientes da grande cozinha, como o foie gras e o tartufo bianco -para citar os paradigmáticos.
Esse é um caminho elitizado, consoante uma tendência internacional, sem dúvida mais “acessivel” agora do que quando a fruição que enseja dependia de viagens ao exterior. Num sentido diverso, jovens chefs -como Alex Atalla- investem uma boa dose de energia em estudos e pesquisas de ingredientes brasileiros.
A primeira tendência, ainda mais forte, se apóia no indiferentismo das elites frente as coisas do país, entregando-se a prazeres comprovados e sem riscos. A segunda encontra fortes obstáculos ao seu desenvolvimento no tratamento ainda artesanal dos ingredientes com potencial inovador, bem como por sua dispersão pelo território: não se pode, por exemplo, encontrar o jambu (20) do Pará senão nas feiras locais; os peixes de rio não chegam às feiras e mercados dos grandes centros urbanos; as frutas amazônicas, do nordeste ou centro-oeste se restringem aos mercados locais; apenas recentemente o Ibama descriminalizou o consumo de animais nativos criados em cativeiro etc.
Essas condições objetivas, de natureza econômica e cultural, deixam apenas uma fresta por onde desenvolver uma “redescoberta” dos sabores brasileiros.
Notas:
1 - REVEL, Jean-François, "Um Banquete de Palavras: Uma História da Sensibilidade Gastronômica", São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pág. 178. O autor lembra também que a palavra “gastrônomo” só aparece no início do século XIX.
2 - CAMPORESI, Piero, "Hedonismo e Exotismo: A Arte de Viver na Época das Luzes", São Paulo, Editora Unesp, 1995, pág. 84.
3 - SAVARIN, Brillat, "A Fisiologia do Gosto", São Paulo, Companhia das Letras, 2001, pág. 143.
4 - ESCOFFIER, Auguste, "La Guide Culinaire", Flammarion, Paris, 1993, pág. 4.
5 - Escoffier se aborrecia sempre que se apontava essa sua delicada criação como a origem do popularíssimo ice cream sundae (“Qualquer variação nesse delicado equilíbrio de sabores é a sua ruína”, dizia).
6 - BOCUSE, Paul, "La Nueva Cocina Francesa de Paul Bocuse (La Cuisine du Marché)", Buenos Aires, Editorial Crea, 1979, pág. 9.
7 - BLANC, Georges, "The Natural Cuisine of Georges Blanc", Webb & Bower, New York, 1987.
8 - LUBOW, Arthur, “Lo, the Poor Indian: a food critic views the americanization of subcontinental cuisine with some regret”, "Slate", 15 de janeiro de 1998, www.slate.com.
9 - Hoje em dia podemos prever que a melhoria e transformação genética são outras possibilidades de repertório, haja vista o exemplo do recém “desenvolvido” riso nero, a partir do secular “arroz do imperador’, oriundo da China. Ainda não existem, para sua utilização, mais de meia dúzia de receitas...
10 - Claude Levi-Strauss oferece uma instigante análise desse processo em seu ensaio "Raça e História".
11 - STEINGARTEN, Jeffrey, "O Homem Que Comeu de Tudo", São Paulo, Companhia das Letras, 2000. O autor também encontrou os seus “limites” em comidas azuis e em sobremesas indianas que diz terem textura e gosto de creme facial.
12 - Para um simples inventário natural consulte-se CAVALCANTE, Paulo B., "Frutas Comestíveis da Amazônia", Museu Paraense Emilio Goeldi, Belém, que indica 176 frutas comestíveis, catalogadas na região. Consulte-se ainda PEREIRA, Huascar, "Pequena Contribuição para um Diccionário das Plantas Úteis do Estado de São Paulo (indígenas e aclimatadas)", Typographia Brasil de Rothschild, São Paulo, 1929, para a riqueza original de São Paulo na mesma matéria. Apesar dessa diversidade, vivemos uma autêntica regressão: frutos exóticos como o abricó (Mammea americana) ou a fruta-pão (Artocarpus altilis), de uso corrente em outras épocas, simplesmente deixaram de ser consumidos na escala que o foram.
13 - Conforme Câmara Cascudo, ela só passa a existir na segunda metade do XIX, a partir da unificação dos cultos africanos do candomblé.
14 - Consulte-se especialmente a obra de Manuel Querino, "A Arte Culinária na Bahia", e "A Cozinha Baiana", de Darwin Brandão.
15 - MELLO, Evaldo Cabral de, “Nas fronteiras do Paladar”, "Mais!", "Folha de S. Paulo", 28/05/2000.
16 - Pela importância, além da italiana, sente-se o peso da árabe e da japonesa.
17 - Ver a respeito o interessante ensaio de SARAMAGO, Alfredo, "Doçaria Conventual do Alentejo: As Receitas e o Seu Enquadramento Histórico", Sintra, Colares Editora, 1993.
18 - PIERSON, Donald, "Hábitos Alimentares em São Paulo", "Revista do Arquivo Municipal", ano X, vol. XCVIII, São Paulo, 1944.
19 - Como sempre, havia as exceções de praxe: o Grande Hotel Cadoro em São Paulo, o Copacabana Palace e o Ouro Verde, no Rio de Janeiro, pertencentes à velha “grande tradição”, talvez ainda inspirada por Escoffier.
20 - Uma espécie de agrião selvagem, presente em pratos com tucupi, da tradição amazônica.
Carlos Alberto Dória
É sociólogo, consultor e autor de livros como "Ensaios Enveredados", "O Cangaço" e "Bordado da Fama".
Fonte:
http://www.martinfierro.com.br/curso/subdesenvolvida.html
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