quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

No rastro do boi

No rastro do boi

Tão logo completou sete meses, Querida da Mombaça passou a ter todos os passos monitorados, numa espécie de Big Brother rural. Ao engolir um chip, a vaca da raça Canchim que vive nos arredores de Belo Horizonte (MG) ganhou nome e um RG eletrônico, que permite o registro de uma longa lista de informações sobre ela. Quando chegar ao frigorífico para o abate, os dados contidos no chip de Querida serão transferidos para etiquetas que acompanharão cada uma de suas partes nas prateleiras dos supermercados. Assim, os clientes que comprarem os pedaços de carne cuidadosamente distribuídos em bandejas terão a oportunidade de conhecer a história da sua vida. Rastrear o gado do pasto até o prato é o negócio da Safe Trace, empresa mineira criada em 2005 por dois jovens da Universidade Federal de Itajubá. Os empreendedores, universitários à época, desenharam nas salas de aula a ideia que usa tecnologia de identificação por radiofrequência (RFID) para informar ao cliente a procedência da carne. Quase cinco anos e R$ 5 milhões em investimentos depois, chegaram ao modelo final: nos primeiros meses de vida, o animal recebe um chip, que pode vir na forma de um brinco eletrônico ou do chamado bólus, uma cápsula de cerâmica de quase sete centímetros e 80 gramas que é engolida pelo boi. Ele passa, então, a ser rastreado por radiofrequência até a morte (veja quadro na pág. 88). Munidos de uma antena, os técnicos da Safe Trace vão a cada quatro meses às fazendas para fazer a leitura do gado. A tecnologia é semelhante à usada no sistema de pedágios Sem Parar, em que o chip do carro é lido antes de passar pela catraca. As informações são cadastradas e ficam disponíveis na internet. É possível saber muito sobre o animal: origem, sexo, peso, vacinas recebidas, donos, por onde pastou e até seus parceiros amorosos. No supermercado, o consumidor vai encontrar na bandeja de carne uma etiqueta com o código de barras e um número que remete ao animal que originou o produto. O cliente entra no site da empresa e pode descobrir em que fazenda o bife do seu prato viveu, em que dia foi abatido e em qual frigorífico. Os mais curiosos poderão checar, em listas de órgãos federais e ONGs, se as propriedades pelas quais o animal passou estão relacionadas ao trabalho escravo ou ao desmatamento.
Pasto na floresta

A motivação inicial da Safe Trace era oferecer um serviço que garantisse ao consumidor o bom estado de saúde do animal vendido nas gôndolas. Em 2005, quando a empresa começou a ser concebida, o mundo sofria com consecutivos surtos do mal da vaca louca, que restringiu a circulação de carne produzida em países acometidos pela doença, reduzindo sensivelmente o comércio internacional. Garantir a qualidade da carne continua sendo um dos objetivos da empresa, mas recentemente ela ganhou um propósito adicional: ajudar a proteger o meio ambiente. Segundo o governo brasileiro, 80% das árvores derrubadas na Amazônia dão lugar a rebanhos. A cada minuto, 1,4 hectare de floresta (o equivalente a quase um campo e meio de futebol) é convertido em pastagem. Assim, acompanhar a trajetória de vida dos animais é fundamental para garantir que os rebanhos não estejam destruindo árvores, o que interessa cada vez mais aos países importadores. “O trabalho desses empreendedores é o futuro”, afirma Pedro Felício, professor de tecnologia de alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em tecnologias para produtos de origem animal. “As grandes redes americanas vêm avisando seus fornecedores há pelo menos cinco anos para se prepararem, usando radiofrequência”, diz Felício. Neste ano, os alertas se tornaram realidade por aqui. Após a grande repercussão de um relatório divulgado pelo Greenpeace, em junho passado, várias companhias resolveram tomar uma posição. Batizado de A Farra do Boi na Amazônia, o levantamento listou grandes companhias que, por meio da cadeia de fornecedores, contribuem de forma direta para a derrubada da floresta. Foram citados nominalmente grandes frigoríficos nacionais, como JBS Friboi, Marfrig e Bertin. Compradores de carne e couro também não passaram incólumes. Grandes varejistas, como Walmart e Carrefour, além de marcas de renome como Adidas, Nike, Clarks, Timberland e Gucci estão no relatório. Diante da pressão, Bertin, Marfrig e JBS assinaram uma carta de intenções. Comprometeram-se – com o Greenpeace e os clientes – a não mais comprar gado de fazendas com desmatamentos ocorridos a partir da data do documento. “A pecuária existe na Amazônia há mais de 40 anos e as empresas sabem o trabalho que terão pela frente”, diz Márcio Astrini, coordenador da campanha da Amazônia do Greenpeace. “A sociedade vai estar atenta para cobrar resultados”, diz ele.


OS ÚLTIMOS MOMENTOS - Assim que chega ao frigorífico,o gado é confinado para se hidratar e descansar da viagem. Os animais passam as últimas 18 horas de vida tomando água e relaxando, processo que facilita o abate. Acima, funcionários de matadouro em Várzea Grande (MT) cortam e separam os bois
Parceria e videogame

Os rostos por trás da Safe Trace são dos jovens Vasco Picchi, 27 anos, e Francisco Biasoto, 30, verdadeiros opostos complementares. Picchi é alto, magro, falante e extrovertido. Biasoto, baixo, gordinho, mais calado e contido. Abusando das características pessoais, Picchi tornou-se o empreendedor da dupla. O engenheiro discorre sobre negócios como um veterano. A despeito da aparência juvenil, é ele quem toca a área comercial da companhia, faz contatos com parceiros, prospecta clientes. Na entrevista a Época NEGÓCIOS, ao lado do sócio, era dele a iniciativa de responder à maioria das questões. A rotina de quem está estruturando uma organização faz com que o rapaz passe boa parte do tempo viajando. E mesmo quando não está em busca de novos contratos, permanece na estrada para percorrer o trecho Jundiaí–Itajubá, onde ficam, respectivamente, seu apartamento e a sede da Safe Trace. Mas a postura focada e adulta não dura o dia todo. Em momentos mais relaxados, faz brincadeiras e deixa transparecer seu lado menino. “Queriam me dar uma geladeira de presente de casamento, mas preferi um PS3”, diz, com sorriso escancarado, referindo-se ao videogame PlayStation, às vésperas da cerimônia na igreja. Francisco Biasoto é o técnico. Autodidata, começou a mexer com eletrônica aos 12 anos. Na empresa, é responsável por aprimorar a tecnologia e garantir o funcionamento do sistema nos frigoríficos e nas fazendas, processos que precisam de ajustes constantes. Um episódio da vida do jovem ilustra por que, nas funções da companhia, é a pessoa certa. Em 2003, Biasoto trancou a faculdade para aprender inglês e se mudou para o sul da Inglaterra. Lá, aproveitou suas habilidades de professor Pardal. Quando não estava nas aulas de inglês, o aspirante a engenheiro trabalhava como vigia em uma obra a fim de ganhar um dinheiro extra. No prédio havia dois portões para um único guarda. Para dar conta do trabalho, usou restos de equipamentos de demolição e fez um aparelho que informava a presença de estranhos no local. Se uma pessoa cruzasse a linha proibida, um rádio em seu bolso apitava, denunciando o invasor. O dono da construção gostou tanto da ideia que comprou o equipamento quando Biasoto voltou para o Brasil. Até mesmo seu hobby tem ligação com o mundo nerd: é radioamador licenciado pela Anatel. Passa horas no sótão de sua casa conhecendo pessoas de todo o mundo. Em uma de suas conexões, contratou um funcionário para a Safe Trace que entende tanto quanto ele desse universo. Picchi ouviu falar pela primeira vez em rastreabilidade na adolescência, quando acompanhou o pai, então diretor de uma certificadora de couro, a uma reunião de trabalho. Na ocasião, questionou um dos participantes se seria possível fazer o recall de carnes usando o sistema de monitoramento, assim como ocorre na indústria automobilística. A resposta negativa intrigou o garoto. “Ele me explicou que, na linha de desmontagem de bois do frigorífico, a origem dos pedaços se perde”, diz. Anos depois, buscaria uma solução na faculdade. Picchi cursava uma disciplina de ênfase na mesma sala de Biasoto e os dois tinham de apresentar como tarefa escolar uma pesquisa em sistemas de informação com tema livre. Sem muitas opções, Picchi lembrou do problema do gado e sugeriu ao colega que criassem um produto para acompanhar o animal dentro do abatedouro. O tiro foi certeiro. Em poucos meses, criaram a empresa com apoio da Incubadora de Empresas de Base Tecnológica de Itajubá (Incit). “Em dez anos de trabalho, nunca vi empreendedores tão determinados como eles”, afirma Geanete Dias, gerente da Incit. No prédio que hospeda a incubadora e a Safe Trace, uma conservada construção de 1913 em estilo colonial, os jovens servem de modelo para as outras 17 incubadas. “Eles são os únicos que conseguiram investimentos de um fundo”, diz Geanete.
Puxão de orelha japonês

Enquanto no interior de Minas Gerais Biasoto e Picchi costuravam o plano de negócios para estruturar a empresa, na capital, Belo Horizonte, o destino se encarregou de dar uma forcinha à dupla. David Travesso Neto, presidente da FIR Capital, uma gestora de fundos de venture capital que, entre outras transações, vendeu uma de suas empresas investidas para o Google, participava de um almoço de negócios com empresários japoneses da área de energia limpa. Corria o ano de 2006 e eles estavam em uma churrascaria. Entre uma picanha e outra, o executivo estrangeiro, ex-trader de carne no Japão, comentou que jamais conseguira entender como o Brasil perdia a oportunidade de ter uma posição ainda mais predominante entre os grandes players mundiais da cadeia bovina. Com o maior rebanho de gado do planeta, clima favorável e recursos naturais abundantes, deixava de exportar para inúmeros mercados por não ter credibilidade. “É impressionante a incapacidade de vocês de gerar valor às coisas”, disse o empresário japonês.


TECNOLOGIA, ANTES E DEPOIS - Francisco Biasoto, Vasco Picchie Rodrigo Argüeso (da esq.para a dir.) mostramobólus, uma cápsula com chip que é engolida pelo boi e permite o rastreamento do gado por radiofrequência. No supermercado, as carnes etiquetadas informam a origem do animal que o consumidor terá no prato

Neto teve um clique. Resgatou de suas memórias um acontecimento de meses atrás, quando a dupla de Itajubá esteve em seu escritório para apresentar a proposta da companhia e pedir investimento de R$ 500 mil. Naquele dia, Picchi e Biasoto saíram de lá da mesma forma que os mais de 150 empreendedores que batem à porta da FIR Capital todos os meses: com uma resposta negativa. Mas as observações do empresário japonês mudaram os rumos da Safe Trace. “Deu samba”, relembra Neto. “A novidade do produto é que junta as diversas tecnologias existentes e os elos da cadeia para criar um processo integrado de rastreabilidade que garante que o bife vendido percorreu o caminho tal e tem origem tal.” A entrada de Neto no negócio não se refletiu apenas em recursos. O modelo inicial proposto pelos jovens tinha um problema grave. No lugar de monitorar o gado do nascimento à morte, acompanhava o animal somente dentro do frigorífico. Mas de que serviria saber a origem do boi no abate se a procedência portão afora fosse desconhecida? Mais que isso. O número de matadouros no Brasil não é tão grande a ponto de sustentar uma empresa no longo prazo. A FIR Capital concordou em investir o dinheiro – e colocou R$ 5 milhões na ideia. Mas a condição era que houvesse uma mudança geral no plano de negócios. Entrou na jogada, então, o economista Rodrigo Argüeso, 45 anos, à época sócio da gestora e hoje presidente da Safe Trace. Foi com a ajuda dele que a companhia foi redesenhada até chegar aos moldes atuais. “Realizei um desejo pessoal: experimentar a gestão de uma empresa”, afirma ele, que trabalhava no mercado financeiro. A mais nova tacada de Argüeso foi uma parceria com a consultoria PricewaterhouseCoopers, que vai auditar os processos da companhia e acompanhá-la na busca de novos clientes. O novo modelo de negócios contempla, além da rastreabilidade, a realização de testes de DNA em uma amostragem da carne, algo entre 0,5% e 2% dos animais de cada propriedade. “É uma contraprova usada para avaliar o sistema de controle eletrônico”, afirma Virgílio Cançado, 37 anos, sócio e diretor da Safe Trace. Veterinário, ele é o responsável por administrar as ações nas fazendas. “Se necessário, vai ser possível fazer o recall dos produtos das prateleiras.” A tecnologia usada pela Safe Trace está hoje em cinco frigoríficos e oito fazendas. A partir deste mês, a empresa vai dar início à aplicação de 50 mil bólus em animais de diferentes propriedades. Em cinco anos, a previsão é faturar R$ 85 milhões. Embora pareça promissor, o modelo proposto deve levar um tempo para amadurecer e só vai dar certo se tiver a ajuda de toda a cadeia. “O sistema é um grande passo, mas depende muito mais da disciplina operacional do frigorífico do que da tecnologia”, afirma o engenheiro Antonio Carlos Lirani, especialista em rastreabilidade. Ganhar escala é outro desafio, principalmente em um país com dimensões continentais. Uma pequena rede de supermercados em Minas Gerais, chamada Verdemar, foi a primeira a oferecer aos consumidores carne rastreada da fazenda à gôndola com a auditoria da Safe Trace. A varejista, que vende para um consumidor de elite de Belo Horizonte, compra a carne do Frigorífico Pantanal, localizado em Várzea Grande (MT), cujos processos são acompanhados por funcionários da companhia. Saber de onde vem a carne que se leva para o prato tem preço. Para o consumidor final, o quilo da carne custa até R$ 0,50 mais caro. Mas os clientes parecem dispostos a pagar mais, principalmente aqueles com consciência ecológica. “À medida que a informação é disseminada, eles ficam mais críticos e exigem das empresas ações concretas”, afirma Alexandre Poni, dono da Verdemar. “A sustentabilidade é um caminho sem volta.” Se ele estiver certo, não vai faltar boi para os garotos empreendedores de Itajubá seguirem o rastro.

Fonte: Época Negócios

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