quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Bacalhau, atum e cia.


Do jeito que a coisa vai, todo mundo vai ter de virar vegetariano. Não por opção, mas por falta dela. Mesmo quem andava pensando em escapar da carne vermelha, em favor do peixe, vai precisar rever posição, mais dia menos dia, com a crise dos estoques de pescado.
Carne vermelha, para esta coluna, é bovina, suína ou galinácea. Bichos criados em escala industrial, o que ocasiona um monte de problemas ambientais --destruição de florestas (o rebanho brasileiro que mais cresce é o da Amazônia) à contaminação de mananciais com efluentes (esterco). Oxalá ovinos e caprinos tenham menos impacto, rogam os mais crédulos.
Mesmo frangos, que já foram considerados carne "branca" e saudável, são para lá de problemática. O jeito como são criados nas grandes granjas costuma ser aterrador, para quem se dá ao trabalho de buscar saber de onde vem a comida. Mesmo sem simpatia pelo bicho em si, dá para compadecer-se diante da informação de que os bicos são decepados para impedir automutilação.
Peixes são outros 500. Não têm exatamente patas, cara, cintura. Locomovem-se de forma ondulatória, algo impossível de imaginar como remotamente humano. Repare como parece canhestro o nado de sereias e tritões no cinema.
São vertebrados como nós, mas é como se não fossem. Para o filósofo Peter Singer, qualificam-se como animais capazes de sentir dor, mas qualquer um pode perceber que são inferiores a coelhos e leitões. Para melhorar, levam a fama de ser carne saudável, cheia de ômega-3, sabe-se lá o que mais. Apesar da aparência e da reputação, não são menos problemáticos.
Considere os acepipes bacalhau e o atum. São também duas das variedades de pescado com maior interesse comercial e, por isso, capturadas em excesso. O atum do Mediterrâneo já foi para o saco. Idem o bacalhau do Atlântico, antes pescado aos borbotões a leste do Canadá e dos EUA, agora disponível em quantidades sustentáveis só no mar de Barents, em gélidas águas norueguesas e russas.
(A situação do bacalhau deu ensejo a uma pequena controvérsia na página Tendências/Debates da Folha, que pode ser lida por assinantes do jornal e do UOL aqui e aqui. Até o crítico de culinária Josimar Melo se mostrou sensível, aqui, ao conflito entre o alto custo do bacalhau, fruto de sua escassez, e o benefício de uma carne de sabor, cor e textura inesquecíveis.)
Nada menos que 70% dos estoques pesqueiros comerciais estão ameaçados, afirma o relatório "Living Planet", do WWF. Bacalhau e atum, dois grandes predadores, foram as primeiras estrelas a cair do firmamento submerso, mas as frotas pesqueiras --muitas movidas mais a subsídios do que combustível e mercado-- voltaram seus esforços arrasadores para o pescado miúdo, de sardinhas e lulas a camarões e krill, o impalatável crustáceo antártico.
Sobrou até para os tubarões. Um quilo de barbatana, consumido como iguaria na Ásia, pode custar cem dólares. Azar dos cabeças-de-martelo, abatidos à taxa de 4 milhões de exemplares por ano.
A coisa mais difícil do mundo é pôr os países de acordo sobre como freios a essa atividade predatória. Segundo o WWF, 3 bilhões de pessoas --quase a metade da população global-- dependem do pescado para suprir pelo menos 15% da proteína em suas dietas.
Os oceanos compõem um exemplo de manual do que a literatura ambiental consagrou como o problema dos "commons". Nessas áreas de exploração coletiva, cada agente econômico se vê incentivado a extrair o máximo de rendimento do recurso comum, o que termina por esgotá-lo. Água, solos férteis e ar limpo vão pelo mesmo caminho.
Engana-se quem achar que a piscicultura e a modificação genética dos peixes --como já se faz com salmões-- é a solução mágica para a exaustão dos estoques. Se chegarem a produzir na mesma escala com que se pesca nos mares, hoje, acarretarão fatalmente problemas ambientais similares aos da criação industrial de bois, porcos e frangos.
A carcinicultura (produção de camarões em cativeiro), por exemplo, já leva à destruição de mangues no mundo todo, inclusive no Brasil. Variedades artificiais de salmão ameaçam substituir a população dos primos selvagens. Tucunarés transpostos para represas fora da bacia amazônica, como no Estado de São Paulo, estão destruindo a fauna aquática local com sua voracidade.
O mar não está para peixe, nem os rios, lagoas e açudes. Um dia todo mundo vai virar vegetariano, por necessidade e não virtude. A única coisa boa de ter atravessado o Rubicão dos 50 anos é saber que essa tragédia não ocorrerá em seu tempo de vida.
Marcelo Leite MARCELO LEITE é repórter especial da Folha, autor dos livros "Folha Explica Darwin" (Publifolha) e "Ciência - Use com Cuidado" (Unicamp) e responsável pelo blog Ciência em Dia (Ciência em dia). Escreve às quartas-feiras neste espaço.

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