sábado, 13 de novembro de 2010

Culinária francesa: muito além do 'luxo'




Culinária francesa: muito além do 'luxo'

Na imprensa e no cinema, a culinária francesa é sempre associada a sofisticação, elegância e romance. Poucos textos fogem dessa adjetivação. Raramente mencionam, por exemplo, o processo pelo qual se construiu essa imagem de requinte – estreitamente relacionado à própria história de afirmação da gastronomia como arte – e a diversidade de cozinhas existente na França.

"O correto, talvez, fosse dizer ‘gastronomias francesas’, no plural, de tão variada que é essa culinária”, afirma o chef francês Christian Couësmes, sócio-proprietário do Elysée Buffet, que apresentou neste dia 20 de setembro, com a professora Verônica Ginani, da Universidade de Brasília (UnB), a palestra “A Culinária Francesa”, realizada no Centro de Excelência em Turismo (CET) da UnB.

O evento, quarto em uma série do V Ciclo de Palestras Qualidade em Alimentos do CET/UnB, abordou tanto a história quanto os fatores regionais e culturais que a formaram a culinária francesa.

Primeiros passos

Mestre em Nutrição Humana pelo Departamento de Nutrição da UnB e especialista em Qualidade de Alimentos pelo CET, Verônica Ginani iniciou a apresentação com um histórico da culinária desse país europeu, cujo primeiro destaque foi Taillevent (1310-1395), autor do livro Le Viandier e cozinheiro de diversos reis da França. Foi ele que utilizou, pela primeira vez, o vinho no preparo de pratos.

Segundo Verônica, foi durante a Era das Navegações e o Renascimento que ocorreu a maior diversificação da culinária francesa e de toda a Europa, como conseqüência da chegada de ingredientes novos oriundos da América, da África e da Ásia. “Ninguém consegue imaginar, hoje, a culinária alemã sem batatas ou a italiana sem tomates, mas tudo isso veio da América”, comentou. “A reforma protestante, também, foi muito importante para a evolução da culinária, pois enfraqueceu a Igreja, que associava o prazer de comer ao pecado.”

Ela cita como contribuição relevante para a liberação do prazer à mesa o livro De honesta voluptate et valetudine, do italiano Bartolomeu Sacchi, que saiu em defesa da honesta virtude da gastronomia comedida. “Nessa época, a França recebeu influência da culinária italiana, especialmente de Florença, Milão e Veneza, por causa das contínuas invasões que fez a principados da Itália”.

Os grandes chefs



A fundação da cozinha francesa veio, de fato, com La Varenne (codinome de François Pierre), autor do livro La cuisine françois, que pela primeira vez sistematizou algumas receitas e retirou os excessos que caracterizavam a gastronomia da época (fortemente condimentada). La Varenne era chef do “Rei Sol” Luís XIV, que estabeleceu o protocolo à mesa e transformou refeições em grandes espetáculos.

Marie-Antoine Carême, criador da “haute cusine”, expandiu esse legado e transformou o molho no núcleo central da cozinha francesa. Aprimorou, também, a pâtisserie, fixou o comportamento da cozinha moderna (no que tange à higiene e às roupas utilizadas) e inventou panelas e utensílios. Foi cozinheiro do famoso diplomata Talleyrand, tendo preparado, inclusive, o banquete dos aliados durante o Congresso de Viena, em 1814.

Nos séculos XVII e XVIII, a burguesia interessa-se por gastronomia e os chefs passam a cozinhar para fora da corte. Surgem pratos com nomes – dedicados a quem os patrocinava – e, pela primeira vez, a diferenciação entre gastronomia “de elite” e “popular”. Outra novidade da época são os cafés, onde filósofos, artistas e intelectuais se reuniam.

A grande contribuição de Grimod de la Reynière (1758-1837) foi a sistematização de comportamentos: autor do primeiro guia de restaurantes da França, ele criou um manual que descreve deveres recíprocos de anfitriões e convivas; fala de como destrinchar carnes; e da composição de cardápios. Escoffier (1846-1935), conhecido como o “rei dos chefs e chef dos reis”, inova ao criar a “cozinha internacional” – que prima pela produção de pratos de fácil consumo – e por juntar-se a César Ritz, proprietário do famoso Hotel Ritz de Paris, na primeira iniciativa a unir gastronomia a hotelaria.

A nouvelle cuisine surgiu, no século XX, em reação à padronização do paladar engendrada pela cozinha internacional. Procura realçar os gostos regionais, reduzir o tempo de cocção, diminuir o peso dos molhos na culinária e valorizar a “cozinha de mercado” (ingredientes de estação). Surgem, neste movimento, pela primeira vez preocupações de ordem dietética. A criatividade, além disso, passa a ser um componente importante, inclusive na apresentação visual da comida.

Tendências contemporâneas




Segundo Verônica Ginani, uma importante tendência que se firma no século XXI é a contestação da padronização do paladar resultante da globalização, em um movimento conhecido como “terroir”. Trata-se da preocupação com a preservação de produtos e modos de produção locais únicos e insubstituíveis na formação da gastronomia e da cultura de um país, em contraposição aos produtos impostos pelo mercado, por considerações meramente relacionadas a custo. “A identidade cultural desafia a globalização”, diz o terroir, que tem na Confédération Paysanne um de seus principais expoentes.

Por sua exposição histórica, Verônica conclui que a própria evolução da gastronomia e sua sistematização como arte – ou seja, a definição do que vem a ser boa culinária – se processou na França, e não é por outro motivo que a cozinha francesa influenciou a gastronomia de quase todo o mundo e é referência inevitável na formação de chefs, a partir da qual as outras culinárias ganharam instrumental para o próprio desenvolvimento.

Diversidade culinária

Em sua exposição, o ex-diplomata francês Christian Couësmes, chef do Elysée Buffet e representante do Club Taste-Vin em Brasília, procurou realçar os motivos que levam à diversidade da cozinha de seu país. “A culinária reflete a disponibilidade de recursos de cada região”, comenta. “A falta de disponibilidade regular de certos produtos fez que se desenvolvessem métodos de conservação em regiões – como chouriços, chucrutes, queijos, carnes secas e conservas – que resultam em pratos regionais diferentes.”

Christian destacou quatro eixos em torno dos quais a culinária francesa varia: a “França do azeite” x “França da manteiga”; a “França do vinho” x “França da cerveja”; a “gastronomia do campo” x “gastronomia da cidade”; e “tradição” x “abertura”.

Os contrastes da França

Segundo ele, as gastronomias do sul da França (abaixo de uma linha imaginária entre Genebra e Bordeaux) diferenciam-se das nórdicas pelo emprego de azeite de oliva no lugar da manteiga. Outra divisão geográfica é entre as áreas em que predomina o vinho e aquelas em que se utiliza a cerveja como ingrediente da culinária, ao longo de uma estreita faixa junto às fronteiras da França com a Alemanha e a Bélgica.

O contraste entre a gastronomia do campo e da cidade reflete, em grande parte, diferenças de poder aquisitivo. “A gastronomia do campo foi determinada, até 1945, quando tem início o uso do DDT na agricultura, pela disponibilidade de produtos: antes, em alguns anos a colheita era boa, em outros quase nada era guardado. Em decorrência disso, a cozinha do campo sempre foi mais simples, ao passo que na cidade a burguesia tinha acesso a uma diversidade maior de produtos e podia, assim, fazer uma gastronomia mais elaborada.”

Também transformou a culinária francesa a assimilação de influências de outros países, no que se expressa a contradição entre “tradição” e “abertura” (a outras culturas). “A imigração de pessoas residentes em ex-colônias francesas, como a Argélia e o Vietnã, trouxe novidades que foram incorporadas à alimentação francesa. Uma pesquisa recente mostrou que o prato mais consumido na França, atualmente, é o cuscuz marroquino.”

Uma unidade absoluta

Christian revela, entretanto, que existe pelo menos uma unidade absoluta em todo o território francês: o pão, consumido em todas as refeições e com todos os pratos. “Até meados do século XX, a população francesa se alimentava basicamente de pão e sopa. O pão é um emblema nacional e, também, um talher, usado para empurrar a comida durante as refeições, por pessoas de todas as classes sociais e em todas as situações. Em nenhum país existe uma variedade tão grande de pães quanto na França.”



Fonte:

http://www.cet.unb.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=134&Itemid=34

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