domingo, 2 de maio de 2010

Das Descontinuidades Alimentares


Mais uma vez retornando ao ótimo artigo "Nação Região, Cidadania: A Construção das Cozinhas Regionais no Projeto Nacional Brasileiro" escrito por Rogéria Campos de Almeida Dutra.



Penso que este trecho (da página 100 a 107) - postado logo abaixo - é de suma importância para os que trabalham com a gastronomia.

Das Descontinuidades Alimentares

O estudo da alimentação tem local privilegiado na análise cultural. Através da discrição da prática cotidiana, desenrola-se esta atividade indispensável à sobrevivência humana. Contudo, a complexidade dos códigos alimentares não se reduz à satisfação de necessidades fisiológicas. A partir de um sistema particularmente elaborado sobre o comestível, ou o tóxico, temos acesso à um tipo de ordenação social e cosmológica: definir os alimentos comestíveis, a forma de prepará-los, combiná-los, assim como as situações de utilizá-los, com quem repartir. Os hábitos alimentares nos permitem conhecer uma sociedade; falar de cozinha não se limita a falar de prazeres gustativos, mas fundamentalmente de princípios simbólicos.

A ordem cultural é construída em termos de uma coerência de um mundo diferenciado e unificado; a
ordem alimentar, um dos níveis onde se exprime simbolicamente a representação do mundo. Lévi-Strauss (1964) é um dos autores que mais enfatizou o espaço da cozinha como cenário privilegiado de reprodução das classificações culturais de uma sociedade. Aliás, a partir de uma perspectiva universalista focaliza-a como experiência humanizadora, presente em todas as culturas. Assim como não existe sociedade humana sem língua falada, não existe sociedade que, de um modo ou de outro, não processe seu alimento. Lévi-Strauss acredita ser a culinária esfera privilegiada de acesso à cultura, na medida em que revela o uso social dos alimentos, domínio do reino natural. A forma como se apreende e se relaciona com a natureza, a qualidade das classificações que se utiliza e o modo como são manipuladas são instâncias definidoras da singularidade cultural. É neste sentido que a cozinha de uma sociedade revela-se como eixo central da integração entre Natureza e Cultura. O acesso aos alimentos, sua in-corporação, será sempre mediada pela forma cultural.

Edmund Leach (1983) vem contribuir com esta reflexão, ao analisar a forma culturalmente construída de distinções entre animais comestíveis e não comestíveis – domésticos, semi-domésticos e estranhos – a partir do critério de proximidade e distância em relação ao grupo social, o que vai ser simbolizado na forma de tabus alimentares. Contudo a pluralidade de formas alimentares não se restringe a diferentes culturas, mas se faz presente dentro da mesma sociedade. Em particular, as sociedades complexas têm se revelado como campo fértil de análise da íntima relação existente entre as regras de comestibilidade e as regras de conduta social. Bourdieu (1979) analisa as estratégias de aspiração social traçadas pelas classes componentes da sociedade francesa, onde o consumo alimentar, dentre outros aspectos, opera como elemento distintivo; as preferências alimentares, refletindo o universo simbólico daqueles que as partilham, traduzem, mas principalmente reforçam, o status daquele grupo, sua localização, não só dentro da sociedade, como dentro de uma mesma classe social. Sahlins (1979), por sua vez, analisa o comportamento alimentar da sociedade norte-americana, cujos hábitos alimentares são orientados sobretudo por uma lógica cultural, onde as regras econômicas e racionais do mercado , tais como escassez e abundância, pouco atuam na definição de alimentos mais ou menos valorizados.
De forma diferenciada, estes autores procuram explicar a distribuição contemporânea de preferências alimentares através do processo social de exclusão. As preferências alimentares figuram entre traços distintivos e singularizantes; e não só variam entre sociedades, grupos sociais, como podem se diferenciar internamente a estes grupos, como comida de homem e de mulher, de criança e de adulto, de homens e de deuses. Revela-se como campo fértil de investigação cultural a observação do modo pelo qual a alimentação participa das intenções sociais e morais dos indivíduos; a focalização da comida como campo de ação, um meio através do qual outros níveis de categorização se manifestam. Assim a continuidade de hábitos alimentares, a manutenção de uma certa tradição é resultado da manipulação de um repertório de formas constantemente negociado entre os atores sociais. A cozinha étnica, por exemplo, antes que um conjunto de receitas, é muito mais uma categoria cultural; ela persiste onde o sentimento de distinção é valorizado, onde há um sentido mais amplo para ser vivenciada. Em geral, os hábitos alimentares de grupos etnicamente distintos se diluem nos padrões alimentares mais amplos na medida em que outras fronteiras culturais se apagam.
Comer e beber são fatos socioculturais que variam segundo o tempo e o espaço. Seja o tempo, o
processo histórico ou o ritmo das estações; seja o espaço, os grupos sociais distintos dentro de uma mesma sociedade, as nações ou as regiões. Grande parte da história brasileira pode ser narrada pelo esforço do poder centralizador em converter as regiões em parte da nação, tanto em termos econômicos e administrativos, quanto políticos e simbólicos. As estradas de ferro, o serviço militar obrigatório, o fortalecimento do mercado interno são fatores que contribuíram para esta integração, juntamente com seus heróis , como o Marechal Rondon. Para além de algumas fórmulas nacionalizadas, como o samba ou a umbanda – as raízes do sentimento nacional ancoram-se na configuração única de partes diversas. A diversidade ambiental reproduz-se na diversidade regional, que se torna desta forma, patrimônio nacional. Pois além da definição de fronteiras territoriais e culturais contínuas é preciso que a nação possua bens culturais.
Entre os atributos da nação brasileira que pontuam a eternidade do solo, figuram as fontes alimentares. Que não se esqueça a dimensão histórica na composição das cozinhas regionais, o intercâmbio de culturas ao longo do tempo. Mas também que não subestimemos as particularidades estimuladas pelo ambiente. No caso brasileiro, dada a carga simbólica conferida à dimensão espacial, “a natureza é nossa riqueza”, incluindo-se aí a profusão tropical alimentar. Mais que simplesmente a diferença, a construção das cozinhas regionais, com seus pratos emblemáticos e combinações singulares marcam a consciência da originalidade. “Regio” origem etmológica latina de região, ressalta em seu significado o ato de delimitar. Uma divisão mais ou menos fundada na realidade, pois instaura-se uma descontinuidade decisória na continuidade natural.
É importante destacar que por detrás da identidade regional jaz a construção de uma fronteira. Funda-se em propriedades ligadas à origem, portando marcas duráveis. São resultado de lutas de classificação, para se impor a divisão do mundo social pelo monopólio “de poder fazer ver e fazer crer” (Bourdieu 1980). O discurso regionalista é um discurso performativo cuja autoridade de definição de critérios depende do reconhecimento e da crença de seus membros nas propriedades culturais que possuem.

Julia Csergo (1998) nos relata o florescimento das cozinhas regionais na França como resultado de
fenômenos que se intercruzam. Primeiro, a preocupação com a “questão nacional” das autoridades francesas após a Revolução, quando buscava-se a fundação da nação histórica pela composição do diverso. Segundo, pelo desenvolvimento dos meios de transporte , que permitiu a maior número de pessoas o acesso ao território francês. Além destes fatores, o grande êxodo para os grandes centros, formadores do mercado consumidor, favorece a ploriferação de restaurantes regionais nas metrópoles. Por sua função memorial, as cozinhas regionais possibilitam ao “estrangeiro” o acesso à modalidade de percepção de uma região, aguçando uma sensibilidade particular. Vale ainda destacar a contribuição de Jeffrey Pilcher (1998), que, através dos hábitos alimentares narra a história do México e todo o processo de conflitos e negociações, entre parcelas distintas da população, e de regiões, que envolveu a construção de sua identidade nacional. Apesar de grandes variações regionais, a integração interna ocorrida no país – seja comercial, viária ou política – ao longo dos séculos XIX e XX foi determinante para a consolidação da “Cozinha Mexicana”. As cozinhas regionais não se reduzem a uma lista de receitas diferentes. Envolve ingredientes, métodos culinários, pratos, formas de sociabilidade e sistema de significados. Ancora-se na experiência vivida, o que a torna de difícil percepção por parte dos próprios atores; a naturalização dos hábitos alimentares traz marca profunda por sua função constitutiva no processo de socialização. O sentido destas práticas, sua vinculação ao “pertencimento” ao grupo, são fruto de reconstruções e negociações que se fazem no presente; nem sempre o típico, o emblemático é o cotidiano, apesar de ser representado como “característico”.
Gilberto Freyre (1968) e Luís da Câmara Cascudo (1983) são autores que se ressaltam pelo destaque que dedicam à questão alimentar como fator constitutivo da identidade nacional. Podemos considerá-los portadores, dentre outros , do projeto da inteligentsia brasileira, na primeira metade do século passado, de construir a identidade nacional valorizando o espaço regional, e o que era considerado como grande empecilho para nossa construção como nação e para o “progresso” da sociedade brasileira: a mistura, a mestiçagem que nos distanciava do padrão europeu de tradição mas conferia grande riqueza à culinária brasileira. As terras brasileiras atuam como cenário, na perspectiva destes autores, em que se assiste o contato de três culturas diferentes, a ameríndia, a africana e a portuguesa, destacando as possibilidades de enriquecimento cultural que se deu pela via do “empréstimo” e do “acréscimo”. A confraternização da cultura na culinária resulta na diversidade de ingredientes, temperos, combinações; que se mantêm vivas, seja pelas receitas, pelas nominações, pelas ocasiões de uso. Gilberto Freyre, em 1926, lança em Recife, o Manifesto Regionalista, onde defende a região como base de organização nacional e a conservação dos valores regionais (leia-se tradicionais) do Brasil. É um movimento que se apresenta significativamente como um “grupo apolítico de ‘Regionalistas’ [que] se reúne em volta da mesa do chá com sequilhos e doces tradicionais da região (...) preparados por mãos de sinhás” (Oliven 1986:70). Trata-se de um autor que inovou a análise da cultura brasileira por valorizar dimensões pouco reconhecidas, como os bastidores do cotidiano, entre eles os hábitos alimentares e as relações sociais neles envolvidas. No seus termos, preocupações aparentemente “femininas em torno de assuntos docemente inofensivos” (op. cit.: LXX). Vale ainda destacar o livro Açúcar (1997) onde focaliza o doce como categoria cultural significativa da cultura brasileira, e em especial do Nordeste . Tanto Freyre como Cascudo merecem especial destaque na investigação das gramáticas culinárias brasileiras, e em especial das práticas tradicionais. A ênfase na autenticidade, a busca de raízes, faz transparecer uma certa nostalgia quanto à originalidade do passado, um tanto quanto agreste e tradicional, em processo de descaracterização frente ao progresso e à urbanização. Ressaltam a cozinha como patrimônio cultural a ser valorizado, uma arte coletiva, sem heróis individuais, que surge espontaneamente, como árvores na natureza. A modernidade conduziu-nos, no processo de construção da nação, à consciência de uma especificidade regional. Frente à padronização das sociedades industriais, à provisoriedade das formas, o discurso regionalista vem fundar a legitimidade na tradição. Está ligado às origens, ao lugar e às marcas duráveis, dando uma
definição legítima do mundo social. A culinária, como já foi mencionado, é um dos vetores freqüentemente utilizados na vivência deste referencial identitário. Delimitar uma cozinha envolve variados aspectos. Apesar de muitas vezes ancorar-se na delimitação geográfica, sua extensão é definida socialmente. Numa certa dimensão, as cozinhas regionais apresentam-se como resultado de combinações singulares entre condições históricas e espaciais; contudo, é a associação simbólica ao significado de certas práticas para a constituição de certa identidade, e não sua “autenticidade histórica”, que as fundamenta. Como exemplo ilustrativo deste fato, pode-se destacar o artigo “Cozinha Mineira, Patrimônio Paulista” (Maranhão 2003), onde o autor apresenta o argumento de que a cozinha mineira, apesar do discurso singularizante, é originalmente paulista; chegou à Minas juntamente com os bandeirantes no período colonial, demonstrando que são conhecidos como “mineiros”, “pratos corriqueiros no Centro e no Sudeste do Brasil” (p.86). Contudo, apesar de todo este trabalho de construção simbólica, pode-se dizer, juntamente com Mintz (1996), que as “comidas” de um país são, antes que nacionais, regionais. As cozinhas ancoram-se num lugar, onde se tem alguma referência de pessoas utilizando-se de ingredientes, métodos, receitas numa base regular de produtos. Neste processo de tipificação das cozinhas regionais, alguns pratos se tornam especialmente representativos, marcas de orgulho e distinção. Assim, o quadro de diversidade territorial e cultural brasileiro apresenta pratos típicos conforme as regiões: “Arroz com Pequi”, de Goiás; “Tutu com Lingüiça”, de Minas; “Churrasco Gaúcho; “Tacacá e Tucupi” da região norte; “Baião de Dois”, do Ceará; “Acarajé e Vatapá”, da Bahia (Maciel 1996).
Nesta combinação de qualidades singulares, observa-se que a composição de atributos alocados a
cada região (e a seu habitante) é resultado de múltiplas variáveis. Algumas, podemos identificar, outras fogem à simples relações causais, fruto que são da interconexão de diversos fatores, sejam eles históricos, ecológicos, econômicos ou que se enquadram ao espaço mágico que a antropologia construiu sob o signo de “arbitrário”. Os estados constroem de forma diferenciada sua teia identitária. A identidade paulista, por exemplo, ancorase fortemente na figura do bandeirante desbravador que se fez herói da unidade nacional. A culinária regional, desta forma, se destaca mais em algumas situações do que em outras. Pretendo refletir sobre três situações em particular, que por motivos diversos, têm a “cozinha” como traço marcante na construção da identidade regional. Naturalmente, existem outros exemplos possíveis, mas estes se apresentam particularmente emblemáticos para esta reflexão.
A “Cozinha Gaúcha”, como ocorre freqüentemente nas cozinhas regionais, se constrói através de tipificações, da eleição de determinadas composições culinárias como marcas exteriores de distinção. Apesar da riqueza de sua culinária, com grande variedade de combinações, os gaúchos são conhecidos e reconhecidos pelo Brasil afora pela preferência ao chimarrão como bebida habitual e a prática de fazer churrascos. Não é qualquer churrasco, mas o “Churrasco Gaúcho” que tem formas características de se preparar e de se servir, como por exemplo, ser somente temperado com sal grosso. (Maciel 1996) O churrasco autêntico exige a competência de um gaúcho autêntico em seu preparo, aquele que domina um saber apreendido pela tradição. À competência da “arte de fazer churrasco” complementa-se a autoridade de julgá-lo, se original ou não; o que cabe certamente, ambas as funções, a um nativo. A notoriedade do churrasco, fortemente emblemático, associa-se a diversos fatores possíveis. Sua popularização certamente associa-se ao tipo de sociabilidade que o envolve, seu caráter mais festivo e informal. A própria densidade simbólica que envolve a carne enquanto alimento em nossa cultura ocidental, reforça a imagem de abundância e fartura, onde é qualificada como “o verdadeiro alimento”. A identidade gaúcha apóia-se na composição singular entre a história desta região e sua dimensão espacial. Ancora-se na construção do “gaúcho”, um tipo social bem definido, que por seus caracteres aproxima-se mais de seu homônimo no Uruguai ou Argentina, do que do resto do Brasil.(Oliven 1984).Como habitante dos pampas, tem a vida livre percorrendo vastos campos à cavalo, o que lhe conferiria grande bravura. O clima de adversidades a que é submetido este personagem qualifica sua virilidade; seja a hostilidade da vida campeira, seja a dura realidade de fronteira, sujeita a constantes conflitos. Ao longo da história, o Rio Grande do Sul relacionou-se com o território brasileiro de forma ambígua, revelando uma tensão entre autonomia – a possibilidade de se separar do Brasil – e integração, entre manter sua peculiaridade e afirmar seu pertencimento. Pois neste passado de vida campeira, movida pelo comércio de couro é que aloca-se o hábito de se comer carne assada ao calor de brasas. Churrasquear não é simplesmente comer churrasco, mas implica uma série de relações sociais que o viabiliza, como quem prepara, quem come, neste ritual de comensalidade e partilha. Envolve relações de gênero bem definidas; ao contrário da divisão social do trabalho
mais freqüente, que reserva este espaço da preparação do alimento ao universo feminino, no mundo do churrasco , cabe aos homens sua preparação, uma atividade que se aprende e se ensina no processo de socialização.
A Cozinha Baiana é testemunho da continuidade territorial entre os extremos leste e oeste do Atlântico Sul, do estreito vínculo entre a costa africana e o Brasil durante quase trezentos anos. Como porto expressivo do comércio negreiro, Salvador assiste ao constante ir e vir de gentes, modas, crenças religiosas, alimentos e receitas. Espetáculo freqüente nos mercados, na rua, aqui e lá, as túnicas multicores, as vendedoras de quitutes; as baianas se delineiam como o tipo social característico desta cozinha, capaz de sintetizar sua essência. É uma cozinha em que se destacam o exotismo dos nomes, o inusitado das combinações, o calor do tempero e a natureza tropical de seus ingredientes. Exuberante e afrodisíaca em função dos estimulantes do paladar. A partir do uso do azeite de dendê desfilam frutos do mar, peixes, camarões secos, “matos” daqui e acolá, milhos, feijões, mandioca, arroz e coco. Os portugueses enriqueceram a flora africana com um conjunto de plantas, como o milho e a mandioca; os africanos trouxeram consigo inumeráveis outras. Semelhantes são as técnicas de preparação nas costas brasileira e africana, porém, se a cozinha na costa leste do Atlântico manteve-se mais etnicamente definida, distinta da portuguesa; aqui, revela-se mais sincrética com a introdução de novos aromas e sabores. Contudo, de forma mais sutil que em outras partes do Brasil. O caráter religioso da cozinha baiana contribuiu para que ainda permaneça tão localizada e pouco alterada ao longo do tempo: cada deus tem seu prato preferido, permanecendo assim, esta cozinha, vinculada ao mundo dos orixás. Como bem se refere Bastide (1970), os deuses não mudam facilmente de costume. É de Drummond (Sabino 1991) a observação de que as pessoas falam do mineiro como se este fosse o único a ter peculiaridades da região de origem, o que aconteceria com o nascido em qualquer outro estado.
Mas, ele mesmo, entre tantos outros escritores mineiros, delineia Minas Gerais com palavras que identificam a existência de um “mistério” que envolve a região. Enfatizam a qualidade desta definir-se pelo conteúdo, ou nos termos de João Guimarães Rosa (1985) de ser “Brasil em ponto de dentro”. O mineiro muitas vezes é reconhecido por características tais como sobriedade, honestidade, modéstia, religiosidade. Sua vida social estaria condicionada pela cadeia de montanhas, pela autonomia das fazendas, gerando um espaço propício à estabilidade social, à sedentariedade e ao mundo das relações imediatas. A cozinha mineira, como seu personagem, é qualificada como simples, mas substancial. Baseando-se na versatilidade do uso do milho, no feijão, hortaliças silvestres e a preferência pela carne suína, é enriquecida com grande variedade de doces.
Resultado de uma cultura agrária, revela-nos um sincretismo silencioso que se molda ao longo do tempo. Se singulariza pela trivialidade; seu protagonista, antes que um personagem, é a “família tradicional” e religiosa. Cenário principal da vida cotidiana doméstica, a cozinha mineira acontece na intimidade do mundo da casa e das relações pessoais, ao contrário do ar livre do churrasco dos pampas ou do mundo público, festivo, dos mercados dos quitutes baianos. Não deve faltar entre seus ingredientes o fogão de lenha, a velha cozinheira negra, a supervisão materna, o tempero de alho e cebola, o café, as quitandas, o queijo “mineiro”, a boa conversa. Na perspectiva de Alceu Amoroso Lima (1945), Minas seria a “Voz do Centro”, por se caracterizar pela compensação, equilíbrio, moderação. A cozinha mineira define seu espaço, no leque das diversas regiões, não pelo exotismo ou pela situação longínqua de fronteira, mas como síntese; por sua trivialidade, síntese da
cozinha ordinária. A questão da culinária regional envolve considerações diversas; supõe a existência de certa homogeneidade em determinado território, seja de padrões alimentares, seja de representações sociais. É possível que se identifique semelhanças, aproximações entre duas cozinhas, mas sempre haverá marcos diferenciais, que por pequenos que sejam, definem fronteiras. Vale ressaltar , no entanto, que a distribuição de hábitos alimentares obedece a lógicas distintas à divisão política do território entre estados, ocorrendo diferenças entre padrões alimentares dentro de um mesmo estado, ou semelhanças entre outros.
A construção da singularidade regional é testemunho da importância crucial do projeto de auto-definição para a convivência federativa no seio da unidade nacional. Envolve questões que, de acordo com Oliven (1986) se fazem recorrentes em nossa história na formulação de modelos para organizar a nação: a decisão entre unidade e diversidade, nacional e estrangeiro, popular e erudito, tradição e modernidade, nação e região. O que não implica necessariamente na escolha entre polaridades, mas se apresenta como resultado de composições, em que estes aspectos se fazem simultaneamente presentes.



Considerações Finais

Assim como outras expressões da vida social, os hábitos alimentares também podem ser tomados como operadores de distinções, demarcam fronteiras impondo uma divisão legítima do mundo social Apresentam-se como textos que narram a história de constituição de um grupo, sua contextualização presente, traduzindo, simultaneamente o código de valores que orientam a prática social. Por sua contribuição ao processo de singularização cultural, eles participam da própria representação que o grupo faz de si, da constituição de sua identidade.
Se o movimento folclórico teve grande contribuição na ênfase regional, valorizando-se bens culturais
até então desconhecidos como patrimônio da nação, a partir da década de 50, o nacionalismo brasileiro, na figura de seus intelectuais, assiste a uma mudança radical. No lugar do discurso ufanista e saudoso, a consciência do atraso, a noção de subdesenvolvimento. O que se torna mais importante para a “conscientização” de um país subdesenvolvido, como o Brasil, não é mais sua “riqueza”, mas sua desigualdade. O discurso da riqueza da diversidade regional vai lentamente se deslocando da reflexão social para o empreendimento turístico, onde certamente as cozinhas regionais ocupam papel de destaque. Na verdade, o esgotamento do discurso nacionalista que assistimos desde então reflete a ausência reiterante de seu par complementar, que é a experiência de cidadania. Talvez seja um bom caminho para pensarmos que, ao contrário de receitas tradicionais, pratos emblemáticos, práticas artesanais, a tônica nacional do presente se traduza no projeto de erradicação da fome. Que não é problema simplesmente econômico, como muitas vezes parece, mas social, como já dizia Josué de Castro (2001), onde a sociedade brasileira se revela no dilema entre “o pão e o aço”. Em outras palavras, torna-se desafio construir um projeto nacional mais unificado e menos centralizador.

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